domingo, 2 de outubro de 2011

HIPOGLICEMIA DA VACA LEITEIRA (CETOSE)

HIPOGLICEMIA DA VACA LEITEIRA (HVL)

Sinonímia:
acetonemia, acetonúria, cetose

Definição:
é uma enfermidade metabólica que acomete vacas leiteiras multíparas, com boa produção leiteira, no decorrer dos primeiros 45 dias pós-parto e causada por erros no manejo dietético, caracterizada por depressão nervosa, hipofagia, hipogalaxia, acúmulo de corpos cetônicos, hipoglicemia e de ácidos graxos não esterificados; em alguns casos mais graves a enfermidade pode levar o animal à morte.


Metabolismo Energético na Vaca:
para o pleno entendimento da enfermidade deve-se descrever brevemente o metabolismo energético, em especial a geração de glicose sangüínea e a formação anormal de corpos cetônicos.

nos monogástricos grande parte da glicose sangüínea é proveniente da digestão dos monossacarídeos ou polissacarídeos dietéticos.

já nos ruminantes estes açúcares dietéticos são fermentados no rúmen pela sua microbiota, transformando-se em ácidos graxos voláteis. Apenas quando os bovinos são alimentados com dieta rica em amido, parte deste polissacarídeo ultrapassa o rúmen, sendo digerido em glicose no intestino, e em seguida absorvido integralmente. Não mais que 4% da glicose sistêmica é proveniente desse amido.

a maior parte da glicose sistêmica (cerca de 60%) é proveniente da metabolização do propionato, gerado no rúmen, pelos hepatócitos; 30% da glicose é gerada à partir de aminoácidos e 10% pela transformação de lactato, endógeno ou ruminal, e do glicerol oriundo da metabolização das gorduras.

a síntese de glicose à partir de moléculas que não os açúcares é um processo bioquímico denominado de gliconeogênese.

uma vaca seca necessita gerar 50g de glicose/dia para seu requerimento, enquanto que uma vaca em lactação, com produção média de 23 kg de leite, deve gerar 1700 g de glicose/dia, pois grande parte deste açúcar é necessário para a formação da lactose láctea.

diferentemente dos monogástricos, os ruminantes adultos não utilizam a glicose como fonte de energia em todos os tecidos do organismo, mas nos órgãos mais nobres como: sistema nervoso central, fígado, eritrócitos, rins, glândula mamária e para os fetos.

quando uma vaca não consegue gerar quantidade adequada de glicose, ou quando ocorre um déficit de energia global no organismo a gordura armazenada nos depósitos é mobilizada.

Entenda a doença:

QUADRO ESQUEMÁTICO














em síntese: no caso de ocorrer uma grande mobilização de gordura orgânica, fato este predominante na HVL, um excesso de AGLs será disponível formando grande quantidade de acetil CoA. Por falta de oxaloacetato para adentrar no ciclo de Krebs, o acetil CoA se acumulará, sendo transformado em corpos cetônicos. Inicialmente é formado o acetoacetato, o qual será parcialmente transformado em BETA-hidroxibutirato e acetona.

exclusivamente em algumas vacas com HVL o BETA-hidroxibutirato pode ser transformado no sistema nervoso central em isopropilálcool, o qual promove o surgimento de sintomas nervosos, tais como hiperestesia e agressividade.

Prejuízos Econômicos:
além dos gastos com o tratamento, os prejuízos mais sérios da HVL são a perda de cerca 60 até 300 litros de leite por lactação, a infertilidade temporária das vacas e a chance maior do aparecimento de outras enfermidades do puerpério, em especial a chance 35% maior de ocorrência de mastite.

Aspectos Epidemiológicos:
até o momento dois estudos epidemiológicos isolados foram realizados em rebanhos leiteiros nacionais. Em um deles não foi encontrado caso qualquer; no segundo trabalho de um total de 118 vacas acompanhadas, 16 (13,56%) apresentaram alta presença de corpos cetônicos, mas sem exibirem sintomas clínicos e apenas uma vaca (0,84%) apresentou evidências clínicas e laboratoriais de HVP (LAGO, 1997). Neste último estudo, os casos de vacas com alto teor de corpos cetônicos, sem sintomas clínicos, surgiram com maior freqüência da 1a a 3a semanas de lactação e um dos casos ocorreu na 8a semana. Não existem estudos avaliando a influência sazonal sobre a incidência de HVL em vacas leiteiras, criadas em nosso meio, mas é possível que esta seja maior no inverno, pois neste período existe uma tendência das vacas receberem menor aporte de energia dietética.

Fatores Predisponentes:
Idade, Número de Lactações e Produção Láctea
vacas velhas são mais sujeitas a apresentarem a HVL, pois têm maior depressão no apetite, em relação as vacas mais jovens, durante os primeiros 60 dias pós-parto, predispondo-as a desenvolverem maior déficit energético neste período.

vacas da 3a a 6a lactações também apresentam mais freqüentemente a enfermidade, pois durante estes estágios a produção láctea atinge o pico máximo durante a vida produtiva, aumentando o requerimento em energia e predispondo o aparecimento de um déficit deste nutriente.

vacas com maior potencial de produção láctea são mais propensas a apresentar a HVP. Contudo, até mesmo vacas com baixa produção láctea (7 a 10 litros) podem apresentar a enfermidade.
Estado Corpóreo:

vacas gordas no final de gestação, com estado corpóreo superior a 3, ingerem menor quantidade de alimentos no período pós-parto.

idêntica situação também ocorre em vacas gordas que permanecem estabuladas por longos períodos e que não fazem exercícios físicos. Estudos recentes provaram que a inatividade física torna menos eficiente o processo de gliconeogênese em vacas durante a lactação.

Produção Láctea e Ingestão de Alimentos no Início da Lactação:
vacas leiteiras atingem, por influência hormonal, o pico máximo de produção leiteira, durante a lactação, nas primeiras três a quatro semanas pós-parto; por outro lado, o apetite em seguida ao parto é bastante reduzido, atingindo seu acme apenas na 7a a 8a semana de lactação. Assim, todo este período até o segundo mês de lactação as vacas apresentam um balanço negativo energético, sendo necessário obter energia, eficientemente, de suas reservas. Qualquer contratempo ou dificuldade neste processo poderá predispor o animal a desenvolver a HVL.

Fatores Determinantes
Dois são os fatores determinantes da HVP. O mais comum deles é o alimentar ou primário, subdividido em subalimentação ou superalimentação.

quanto menor o aporte nutricional de proteína ou energia durante o período pós-parto, maior a chance de desenvolver HVL em vacas.

estudos demonstraram que vacas que recebem déficit dietético de 30% de nutrientes digestíveis totais (NDT) podem apresentar uma freqüência de HVL de até 30%.

por outro lado, vacas superalimentadas durante o período seco podem apresentar no pós-parto uma intensa hiporexia, e grande mobilização de gordura de estoques corpóreos.

mesmo assim, ocorrem casos de HVL em vacas que recebem dietas balanceadas, caracterizando os casos espontâneos ou secundários. A maioria destes casos são conseqüências de outros problemas primários que gerem a hiporexia ou mesmo a anorexia prolongada no início da lactação, tais como: processos febris (broncopneumonias, plasmoses, entre outras), distúrbios digestivos (acidose láctica ruminal, deslocamento do abomaso, retículo-peritonite), problemas locomotores, lesões de cavidade bucal, gengivites, entre outras.

a menor ingestão de alimentos faz com que a vaca tenha um gradual quadro de balanço negativo energético. Estes processos primários geralmente causam um quadro leve de HVL e desde que sanada a causa inicial há o pronto restabelecimento do distúrbio metabólico.

a patogenia do processo é complexa. Em casos de subalimentação no período pós-parto, a enfermidade se desenvolve de forma crônica. Com o evoluir do déficit de energia a vaca apresenta gradual hipoglicemia e acetonemia. Quanto maior for a mobilização de gordura para o fígado (esteatose hepática) menor será a capacidade gliconeogênica deste órgão e maior será a hipoglicemia e acetonemia. A hipoglicemia determina a hipofagia e a hipogalaxia presentes, assim como associada a acetonemia a presença de sinais clínicos de depressão nervosa. Cerca de 10% dos animais acometidos podem desenvolver a forma nervosa devida a ação do isopropilálcool no SNC (sistema nervoso central).

Sintomas Clínicos:
Formas clássicas: consuntiva ou caquetizante / forma nervosa
os sintomas clínicos geralmente são discretos quanto as manifestações. Três sintomas são mais encontrados, na maioria dos casos: hipofagia, hipogalaxia e depressão nervosa.

a hipofagia é bastante variável, sendo mais intensa em animais mais gordos. Pode surgir também o apetite seletivo, com o animal deixando de ingerir inicialmente concentrados, em seguida silagem, feno ou capim e em alguns casos pode ocorrer também parorexia (cama, areia, terra, etc.). Em decorrência da hipofagia a perda de peso é considerável. Enquanto que uma vaca normal perde cerca de 10% de seu peso no 60o dia pós-parto, em relação ao dia do parto, uma com hipoglicemia pode perder até 12% de peso, já no 35o dia pós-parto.

a intensidade da hipogalaxia é variável. Estudos internacionais com vacas acometidas pela HVL verificaram que a redução na produção láctea esperada foi, em média, da ordem de 30%. No Brasil, LAGO (1997) comparando com vacas hígidas, constatou que o grupo com HVP apresentava cerca de 20% menor produção leiteira.

vacas acometidas pela HVP apresentam uma certa depressão nervosa, com típico estado de sonolência, olhar fixo, cegueira parcial, cambaleios e ataxia e tremores musculares intermitentes.

a forma aguda da enfermidade, determinada pelo aumento da concentração corpórea de isopropilálcool, é marcada pelo surgimento súbito de episódios temporários (duração de uma a duas horas, com recorrência a cada oito a 12 horas) de um quadro clínico nervoso, com os seguintes sintomas: hiperestesia, agressividade, delírio, movimentos de mastigação, sialorréia, etc.

Patologia clínica:
mensurar glicose no sangue;
mensurar corpos cetônicos no sangue;
fita (urinálise);
mensurar corpos cetônicos no leite (referência para a urina);

teste de Rothera (teste de campo) = usar frasco âmbar
para urina = 1g de nitroprussiato de sódio e 99 g de sulfato de amônio
para leite = 2g de nitroprussiato de sódio e 99 g de sulfato de amônio

Misturar 1g do reagente em 5 ml de urina (ou de leite, se for o caso). Adicione 1 ml de amoníaco concentrado. O resultado positivo mostra uma coloração púrpura escura.

Diagnóstico:
dados de anamnese
quadro clínico evidente
achados de patologia clínica

Diagnóstico Diferencial:
consuntiva = RPT, indigestão, endometrites.
nervosa = raiva, saturnismo, toxidez por Claviceps paspali, babesiose cerebral, listeriose, encefalopatias.

Prognóstico:
quanto a vida = bom
quanto a produção leiteira = mau
Outros problemas = aciclia, cio retardado, aumenta intervalo entre-partos.

Tratamento:
glicose IV a 50% = 500 ml rapidamente
manter com glicose a 20 ou 25% (100 a 200 ml/hora)
complexo B = B1 estimula o apetite
B12 melhora conversão do propionato em glicose

Cálcio, fósforo e magnésio = sim, sempre.

agentes glicogênicos
•propionato de sódio, glicerina ou propileno glicol, via oral, 125-250 g/vaca/2xdia/4dias.
•Lactato de sódio ou cálcio, via oral, 0,5 a 1 kg/dia/7 dias.
•Outros agentes glicogênicos estão surgindo.
•Drench (fluidoterapia oral)

Prevenção:
a prevenção da HVL já deve ser iniciada no período seco. A primeira medida a ser realizada é evitar que as vacas se tornem muito gordas durante esse período. Vacas devem parir com condição corporal não superior a 3,5. Para tal deve ser evitado que vacas secas recebam a mesma alimentação que vacas em lactação. Outra medida para evitar a obesidade é o oferecimento de silagem de milho ad libitum; vacas não devem receber mais de 10 kg de matéria original / dia deste alimento.

vacas leiteiras de excelente produção devem receber concentrados energéticos nas últimas seis semanas de gestação na quantidade de 1% do seu peso vivo. Contudo, este oferecimento deve ser gradativo a fim de permitir uma adequada adaptação ruminal.

durante o início da lactação as vacas devem receber forragem de boa qualidade e com excelente palatabilidade, para estimular o apetite. É fundamental o oferecimento de concentrados energéticos e protéicos de acordo com a produção láctea esperada. Assim vacas com produção superior a 27 litros/dia devem receber 1 kg de concentrados para cada 2 kg de leite produzido; para vacas com 18 a 27 kg de leite/dia devem ser ofertado 1 kg de concentrado para 2,5 kg de leite e vacas com produção menor (10 a 18 kg/dia) 1kg de concentrado para 3 kg de leite produzido. Esta proporção de oferecimento de concentrados deve ser mantida até os três de meses de lactação, quando em seguida é ofertado o concentrado na proporção 1: 3 ou 1: 4 de acordo com a quantidade de produção láctea. O acréscimo de concentrados na dieta deve ser gradual.

o uso de ionóforos (monensina e lasalocida) na dieta favorece o crescimento de bactérias ruminais que produzem propionato, precursor da glicose. Vacas que recebem ionóforos apresentam menor quantidade de corpos cetônicos formados e aumento da glicemia.

o condicionamento físico no período pré-parto, principalmente, para vacas é recomendado. Sugere-se que vacas devam caminhar cerca de 1,5 km por dia, em terrenos planos e não pedregosos, a uma baixa velocidade. Animais previamente exercitados, quando do início da lactação, apresentam uma maior ingestão de alimentos, aumento da glicemia (em cerca de 20%) e diminuição da acetonemia (em 8%).

estudos foram feitos para prevenir a HVL com o uso de propilenoglicol, um precursor de glicose em ruminantes. FONSECA (1997) tratou um grupo de vacas de alta produção com 300 ml de propileno, pela via oral, durante o 10o dia pré-parto e o 16o dia pós-parto (15 beberagens/animal) e acompanhou-as durante 60 dias de lactação. A freqüência de HVL não apresentou diferença significativa entre o grupo tratado (9,1%) e o grupo controle (33,5%), não podendo assim ser recomendada a utilização deste medicamento na prevenção desta enfermidade.

Literatura Complementar:
FONSECA, L. F. L. Suplementação de propilenoglicol para vacas leiteiras periparturientes: efeitos sobre metabolismo, condição corporal, produção e reprodução. São Paulo: Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo. 1997. 114 f. Tese de Doutorado.

LAGO, E. P. Avaliação da incidência de cetose em vacas leiteiras. Piracicaba: Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, Universidade de São Paulo, 1997. 88 f. Tese de Mestrado.

ORTOLANI, E. L. Aspectos clínicos, epidemiológicos e terapêuticos da hipocalcemia de vacas leiteiras. Arq. Bras. Med. Vet. Zoot., Belo Horizonte, v. 47, n. 6, p. 799-808, 1995.

ORTOLANI, E. L. Hipocalcemia da vaca parturiente. Cad. Téc. Esc. Vet. UFMG, Belo Horizonte, n.14, p.59-71, 1995.

ORTOLANI,E.L. Principais distúrbios metabólicos que afetam vacas leiteiras. IN PIERKARSKI, P.R. Curso Intensivo de Atualização em Bovinocultura Leiteira. Curitiba: Universidade Federal do Paraná, 1989, p.74-105. (1ª Edição)

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